LUIZ EDUARDO SOARES | “ESTACIONAMOS NA BARBÁRIE”

Nesta entrevista, Soares, que está lançando seu livro mais recente, Rio de Janeiro: Histórias de Vida e Morte, pela Companhia das Letras, comenta as dificuldades de mudar a cultura de brutalidade no Brasil, o divórcio entre medidas políticas bem-intencionadas e a realidade cotidiana da atuação policial e o que pode ser feito para mudar um cenário em que a sociedade clama por soluções violentas.

O que o caso da chacina da grande São Paulo, apontado como uma vingança policial, diz sobre o Brasil atual?

Mais do que diz, grita a plenos pulmões que estacionamos na barbárie, no que diz respeito à relação do Estado com os grupos sociais que habitam os territórios mais vulneráveis. Casos como esse não são isolados, conforme sugerem algumas autoridades. Eles pontuam com um banho de sangue mais extravagante e ostensivo a rotina das execuções extrajudiciais, perpetradas por policiais, que continuam a ocorrer em todo o país. A tradição dos esquadrões da morte, das scuderies e das milícias persiste, resistindo à promulgação da Constituição. A lógica perversa da vingança engata, entre si, as facções criminosas e os segmentos policiais que recusam a regência da legalidade, e faz derramar sobre a sociedade o veneno da brutalidade letal. A persistência só tem sido possível porque as vítimas têm cor, classe social e endereço específicos. Se as marés de sangue banhassem as camadas médias da população, já se teria dado um basta a este horror.

Quais são as origens do problema? Qual o peso da formação policial na persistência desses casos?

As origens reportam-se aos séculos de escravidão, que injetaram o racismo na veia de nossa formação histórica e disseminaram determinado modelo de relação entre as classes sociais, e entre o Estado e os grupos subalternos, economicamente. Assim como a massa assistiu bestializada à proclamação da República, esteve sempre distante do teatro do poder. Por outro lado, as ideias de igualdade perante a lei e de justiça como equidade nunca se radicaram em nossa cultura política ou nas práticas das instituições, especialmente aquelas inscritas no campo da justiça criminal e da segurança pública. O gesto de Ulysses Guimarães, erguendo a nova Constituição em triunfo, não encontrou correspondência nas atitudes cotidianas do policial uniformizado na esquina, personagem que representa a face mais tangível do Estado para a grande maioria da povo brasileiro. Enquanto a segurança pública não espelhar o princípio da equidade, o Estado democrático de direito e a própria institucionalidade jurídico-política serão vistos com suspeita e ceticismo. Nesse contexto, a formação policial é mais uma consequência do que uma causa, ainda que também concorra para reproduzir os problemas referidos.

Por que é tão difícil mudar a cultura de violência policial?

Porque ela é autorizada pela sociedade, tolerada — quando não incitada — pelos gestores do Poder Executivo, admitida pelo Ministério Público e abençoada pela Justiça, salvo quando os casos chegam à mídia e provocam alguma comoção. Claro que há exceções, honrosas e admiráveis. Entretanto, de um modo geral, no país, as exceções confirmam a regra.

Em que medida a tolerância da sociedade, a crença do “bandido bom, bandido morto” agrava o problema?

Agrava muitíssimo. Mais do que isso: essa crença é o combustível da “cultura da violência”, assim como das práticas estimuladas por este ethos corporativo. Na medida em que o suspeito é definido como inimigo a ser eliminado, a ideia (falsa) de que estamos numa guerra acaba sendo evocada para justificar tanto as mortes provocadas pela ação policial, quanto as mortes de policiais, que são inúmeras e poderiam ser evitadas, se a vida (de todos) fosse a prioridade das políticas de segurança. Contudo, essa crença que confunde justiça com vingança é alimentada por alguns programas de rádio e TV, e nunca foi sistematicamente combatida, porque a segurança até hoje não entrou na agenda pública para valer. Em outras palavras, a mudança da arquitetura institucional da segurança pública, que herdamos da ditadura, ainda não se tornou uma questão prioritária para o conjunto da sociedade e dos agentes públicos. Infelizmente, segurança entra na pauta somente nas crises, quando vozes compreensivelmente indignadas clamam por vingança e políticos demagogos e oportunistas, de direita e esquerda, advogam penas mais duras, surfando na onda, como se fazer o mesmo com mais intensidade pudesse produzir resultados diferentes.

Qual seria o primeiro passo para mudar esse pensamento? Que experiências podem ser inspiradoras?

Educação para a cidadania é o remédio, mas esse tipo de formação só existe em grande escala quando se torna parte nuclear do processo educacional e quando a educação de qualidade é acessível a todos. Outro ingrediente importante é o papel dos liberais. Infelizmente, quase não houve, nem há, liberais no Brasil. Nossos liberais apoiaram a escravidão e as ditaduras. Hoje, são proibicionistas, justificam a violência policial e toleram nosso sistema penitenciário. Resumem seu liberalismo à economia, mesmo assim apenas enquanto seus interesses não estão em risco. Caso contrário, fogem do mercado e se escondem sob as asas do BNDES. A maioria de nossos liberais pensa que direitos humanos é bandeira da esquerda — mesmo que os teóricos da esquerda a considerem liberal e só a aceitem taticamente, como recurso provisório para acumular forças e isolar “os inimigos de classe”. Enquanto não houver um centro ideológico-político liberal, que abrace as causas que deveriam ser as suas, como a equidade, enquanto a crítica à violência policial permanecer monopólio da esquerda, o destino das denúncias será o gueto, o isolamento político e a impotência para promover mudanças. E a brutalidade institucionalizada contra negros e pobres persistirá, pulverizando a lealdade popular ao Estado democrático de direito.

Fonte: Zero Hora | Publicado: 22/08/2015

Relacionados