DA LEI E DA ORDEM NO RIO DE JANEIRO
Garantia da Lei e da Ordem – GLO – é, sob minha óptica, uma operação conduzida pelo Ministério da Defesa e realizada pelas forças públicas nacionais, garantidoras da ordem nacional, com anuência expressa do Presidente da República, quando ocorre o esgotamento das forças públicas estaduais, em situações de graves perturbações da ordem social. As forças públicas nacionais agem de forma episódica, em área restrita, por tempo limitado e, excepcionalmente, garantindo a ordem social, a integridade da população e preservando o funcionamento regular das instituições. É uma operação que se realiza numa faixa cinzenta, de transpasse entre grave desobediência à ordem social e possível avanço a uma específica violação da ordem nacional. Ou seja, atuam em casos de grave perturbação da ordem social que, pela intensidade, volume e repercussão podem evoluir ou configurar-se em perturbação da ordem nacional.
Em razão do aumento da criminalidade violenta, particularmente o de roubos de carga no Rio de Janeiro, o Presidente da República, em 28 de julho, atendendo ao pedido do governador, assinou decreto autorizando (mais uma) GLO naquele Estado.
Audaciosamente organizada, a criminalidade tem dado mostras de que perdeu o respeito ao ser humano, desdenha a obediência à ordem social e desafia o Estado, inclusive sua força, a polícia. E o agravamento dos fatos teria sido a motivação do pedido de socorro à União, o que deu origem a vários questionamentos na tomada de decisões subsequentes. O primeiro diz respeito ao pedido de socorro. Foi um ato oportuno (conveniente e necessário), porque o aumento da ameaça-crime vinha ocorrendo em razão da tibieza das polícias estaduais – civil e militar – ou foi açodado, porque a criminalidade violenta, bem mais que um problema policial, é um problema político-social e órgãos policiais não atuam sobre suas causas? Foi em razão de esgotamento dos esforços generalizados dos órgãos estaduais, ou faltou confiança específica na capacidade de contenção pelas polícias militar e civil? Essas entidades vinham recebendo o necessário apoio administrativo e logístico ou a bandidagem apresentava relativa supremacia de força, particularmente de armamento? O incremento de atos de coragem, de determinação, de arrojo de integrantes dessas instituições, no cumprimento do dever, com sacrifício, até, da própria vida, estaria exaurindo essas corporações ou o fato de estarem sendo muito “vigiadas” por pseudo-organizações de defesa dos direitos humanos, configuraria procedimento que inibe policiais, enfraquece entidades de proteção da sociedade, enaltece bandidos e fortalece organizações criminosas? Portanto, teria havido um pedido açodado e, em conseqüência, assiste-se a uma GLO à meia-boca? Essa GLO pode afetar a credibilidade e o respeito desfrutados pelas FFAA, que estariam caminhando para uma armadilha, pois, não surtindo os efeitos que a população espera e deseja, pôncio-pilatosamente, o governo estadual poderá transferir-lhe a culpa? Ainda que desenvolvendo um hercúleo esforço doutrinário, essa peculiar ação criminosa pode ser enquadrada nas rígidas e basilares premissas que fundamentam a instalação de uma GLO? Efetivamente, não!
O Ministro da Defesa disse que “a patrulha ostensiva inibe a criminalidade, mas isso não basta para atingir a capacidade do crime organizado. Temos que golpeá-lo”. Por que o governo estadual (os três poderes), ao invés de correr choramingando para os braços da mamãe-União, não deu essa ordem expressa às suas forças policiais, que conhecem, vivenciam, encaram esse problema e, portanto, tecnicamente mais bem preparadas que as forças nacionais para enfrentá-lo? Se o calcanhar de Aquiles da força estadual é a inferioridade em armamento e mobilidade, em relação à bandidagem local, por que não instrumentalizá-la logisticamente e fortalecer a área da inteligência?
Ações destemidas dos integrantes da força pública estadual local (às vezes, com o sacrifício da própria vida) evidenciam seu preparo, sua qualificação, mas, também, sua orfandade em matéria de apoio governamental. Apoio moral, antecedendo o apoio material! Não se ouviu uma voz sequer, firme, enérgica, corajosa de uma autoridade dos três poderes estaduais, clamando por um basta na ousadia e na covardia de criminosos, propugnando e reconhecendo a necessidade de endurecimento das ações da força pública estadual. Que está acuada!… A mesma comunidade que lhe pede socorro é a mesma que a apedreja, que a desafia, que a confronta desrespeitosamente, forma encontrada por ela para despejar seu ódio contra os administradores de gabinete, instalados sob ar refrigerado. Incisivo foi o ministro Raul Jungmann que, além de propagar a necessidade de golpear o crime organizado, categoricamente afirmou, ainda, “que há uma banalização do uso das FFAA para ações de segurança pública por meio de decretos de GLO”.
Se efetivamente comprovada a necessidade de um reforço, por que não, num primeiro momento, um adequado efetivo da Força Nacional de Segurança Pública (cujos integrantes são policiais de outros Estados) – melhor armada e equipada que a força policial local – para um trabalho integrado? Por que o comando da GLO é compartilhado com o Secretário de Segurança que, após o período de transpasse, deveria ser coadjuvante, visto que, em uma verdadeira GLO, não há previsão desse tal comando compartilhado? Por que a força pública nacional, bem armada e equipada, atua isoladamente, isto é, não realiza operações conjuntas com a força pública estadual, exímia conhecedora do terreno e do comportamento da bandidagem?
É cristalino que o problema do RJ é menos policial do que uma grave distopia estatal, isto é, em certas comunidades ou não há agências representativas de órgãos estaduais ou, quando existem, funcionam de forma anômala, descuidada, às vezes, até, irresponsável, em razão de desprovimento administrativo e logístico. Mesmo que haja empenho, interesse de gestores e servidores em geral, a falta de compromisso de administradores vem corroendo a estrutura pública. Essa vulnerabilidade provoca elevação do número de marginalizados que, cooptados por organizações criminosas, aumentam o número de marginais naquele Estado.
Quando da última GLO no RJ, o governo local comprometeu-se em realizar ações sociais simultâneas. Paliativas e, pior, não foram feitas. Dizem que, desta vez, serão realizadas. Hum, sei não!… Esse comportamento populista de distribuir leite, fralda, cesta básica e congêneres satisfaz uma necessidade momentânea, já percebida pela comunidade. Objetivamente, ela quer e precisa de preenchimento de necessidades estruturais, de correções efetivas na distopia estatal, principalmente com implantação de programas e projetos na área social, a médio e longo prazos.
Enfim, sobejamente comprovada a origem dessas mazelas no RJ – administração corrupta e gestão engessada – é preocupante a possibilidade de estar em curso uma insidiosa manobra de transferência de irresponsabilidades governamentais estaduais para a esfera federal, via força pública nacional, sob o pretexto de vulnerabilidades na área policial estadual, quando, na verdade, estão na área social e na administrativa.
O fato é que está na hora de as FFAA dizerem não à duvidosa necessidade de seu qualificado emprego, para corrigir desconfortos sociais decorrentes de inação ou de incompetência de governos estaduais, principalmente na área social, que se iniciam com a desconsideração, a desvalorização e o desrespeito aos serviços públicos, cuja resultante coloca em cheque o conceito de sociedade e o de governo.
(*) Coronel Reformado da PMMG
Ex-Comandante da RMBH