A VEZ DA ‘MÃO AMIGA’ DO EXÉRCITO BRASILEIRO NA SEGURANÇA PÚBLICA
Do Blog FACES DA VIOLÊNCIA Folha de São Paulo
Com Arthur Trindade Maranhão Costa, membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da UNB. Ex-Capitão do Exército Brasileiro e Ex-Secretário de Segurança Pública e da Paz Social do Distrito Federal.
Quando se fala no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública, quase sempre, lembramos das custosas e pouco efetivas operações de ocupações de comunidades no Rio de Janeiro. Operações que estão em muito lastreadas na doutrina penal militarizada do inimigo, cujos objetivos é conquistar territórios e derrotar o inimigo, incapacitando-o seja pelo tratamento distinto no campo penal, pelo “abate” ou pela prisão.
O atual debate eleitoral, seja para a Presidência da República ou seja para Governadores de Estado, tem reforçado esta perspectiva e mostra-se profundamente ideologizado pelos representantes, por mais estranho que possa parecer ao leitor atualmente, da direita conservadora. Ao gritar “pega ladrão” escondemos aquilo que não queremos mostrar, por mais que a repressão qualificada da criminalidade é urgente e pouco debatida nos planos de governo de quase todos os candidatos no país.
Valorizar as polícias e as Forças Armadas virou sinônimo de autorizar enfrentamentos abertos, sem que pensemos na efetividade de ações que são tentadas faz décadas e que só agravam o quadro de pânico moral e social vivido pela população do país. O problema da área é muito mais de governança do que de leniência e frouxidão legal; a segurança pública ganharia muito mais se deslocasse seu olhar para o direito administrativo do que para o direito penal.
Ao mesmo tempo, não falamos sobre as condições de vida e trabalho dos milhares de policiais brasileiros e não nos preocupamos com a dupla vitimização a que são submetidas milhões de pessoas reféns da tirania do crime organizado, das milícias e dos confrontos e tiroteios com “forças de segurança”, que na reprodução de um mesmo padrão e emulando narrativas de combate de grupos terroristas no mundo já passaram todas as serem chamadas assim sem maiores distinções entre funções e competências institucionais.
Tudo foi colocado na mesma embalagem, sem que os problemas de governança e de modelo de organização do sistema de justiça criminal e de segurança pública sejam enfrentados. Prefere-se atribuir as mazelas da área à influência da teoria de Antonio Gramsci e não se avança na implementação de mudanças previstas na Constituição de 1988 e que, passados 30 anos, continuam sendo promessas do texto constitucional.
Normas, Leis e Regulamentos que hoje dão forma e sentido ao funcionamento das instituições de segurança pública brasileira são anteriores à Constituição e não foram produzidos pela esquerda, que por sinal sempre preferiu fugir deste tema ou fazer mais do mesmo. Os problemas da área não são problemas ideológicos. São omissões ou falhas de modelagem jurídica e institucional que até hoje o Congresso Nacional não quis solucionar.
E, sem que tivéssemos feito nenhuma consulta prévia ao Exército Brasileiro, queremos demonstrar com evidências que, se olharmos de forma menos ideologizada e mais profissional, iremos perceber que os dilemas da segurança pública podem ser mais bem endereçados para a conquista da paz e da cidadania se trabalharmos a partir do espírito do que está previsto na nossa Constituição Federal.
Ou seja, a eficiência democrática das instituições exige capacidade de mobilização e inovação e não nos permite confundir a agenda de partidos e candidatos, mesmo que tenham sido eles vinculados a qualquer uma das “forças de segurança”, com a missão das instituições de Estado, que são a garantia da estabilidade política e institucional do país. Elas não pertencem a nenhum espectro político ou a nenhum indivíduo ou grupo, mesmo que egresso delas próprias.
Feita esta introdução, este texto propõe uma inversão absoluta do engajamento que é dado ao Exército Brasileiro na segurança pública do país. Ao invés de pressionar a Força Terrestre com ações reconhecidamente tópicas e de baixo impacto temporal, nossa ideia é aproveitar uma faceta pouco valorizada da Força e que pode gerar ganhos de longo prazo na prevenção da violência e, até mesmo, no combate à corrupção.
Estamos falando da utilização dos Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) na urbanização de territórios dominados pelo crime e pela violência.
E como fazer isso? De acordo com o Diagnóstico dos Homicídios no Brasil, do Ministério da Justiça, em 2015, apenas 111 municípios concentram 76,5% do total de homicídios. Este percentual não mudou muito desde 2015. Boa parte dessas mortes estão localizadas na região Nordeste e, via de regra, concentram-se em 2 ou 3 bairros de cada cidade. Ou seja, as mortes violentas são um fenômeno altamente concentrado territorialmente.
Se atuássemos prioritariamente em cerca de 300 bairros/distritos dos municípios com maior número de mortes violentas intencionais teríamos, no curtíssimo prazo, uma redução bastante significativa da violência e a inclusão de milhões de pessoas no Estado de Direito. Afinal, estes bairros abrigam a população de baixa renda e negra que reside na periferias dos grandes e médios municípios e que são as maiores vítimas da violência.
Esses bairros têm, em geral, uma fraca infraestrutura urbana: precárias ou inexistentes condições de pavimentação, saneamento básico, iluminação e equipamentos para esporte, lazer, cultura e educação. A vida dos jovens moradores destas localidades é marcada pela exclusão social e pela falta de perspectivas de renda e trabalho. A prisão é uma das poucas políticas universais reservadas a estes jovens e, bem sabemos, ao serem presos nas condições prisionais existentes, esses jovens viram mão de obra barata e descartável das organizações criminosas.
O emprego dos BEC significaria uma revolução por lidar, simultaneamente, com as causas e com as consequências do crime, do medo e da violência. A ideia de confronto aberto seria substituída pela ocupação permanente dos territórios dominados pelo crime com políticas públicas. O Exército poderia evitar, ainda, que quadrilhas ou milícias tomassem conta das unidades do “Minha Casa, Minha Vida”antes mesmo que elas sejam entregues à população. Quase o Plano Marshal brasileiro para a reconstrução da esfera pública nestas localidades e a garantia de cidadania.
Caso o leitor não saiba, os BEC são um dos grandes orgulhos do Exército Brasileiro, cujo lema é “Braço Forte, Mão Amiga”. Esta mão amiga vem ajudando o desenvolvimento nacional há mais de 100 anos. Durante os governos Lula e Dilma, os engenheiros militares foram empregados para obras de duplicação de rodovias, transposição do rio São Francisco e construção de aeroportos, dentro outras. Exército não serve apenas para matar o inimigo, como alguns salvadores da pátria gostam de anunciar.
Em função deste recente emprego, os Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) estão muito bem equipados e treinados. Entretanto, sua capacidade está ociosa, dada a atual situação fiscal do país e as prioridades dos atuais dirigentes do país. Atualmente existem 12 BEC’s, sendo 5 na região Nordeste, 4 na Norte, 2 na Centro Oeste e 1 na Sul.
O emprego dos BEC’s é coordenado pelo Departamento de Engenharia e Construção do Exército. Ele é feito através de convênios como os governos municipais e estaduais, ou diretamente junto ao governo federal. Dependendo da obra, os militares do Exército podem contratar civis para auxiliar os trabalhos e podem atuar, em parceria com TCU ou Ministério Público, na fiscalização e prevenção da corrupção que infelizmente tem marcado o setor de infraestrutura do país desde tempos imemoriais.
Seu emprego não depende de intervenção federal, que tem impactos no funcionamento regular do Congresso Nacional, ou Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). E as obras poderão ser custeadas com os recursos já existentes no Ministério das Cidades. Não se trata aumentar os gastos, mas de dar foco e efetividade a eles.
Dito de outro modo, se valorizarmos o pensamento estratégico que marca da doutrina militar das Forças Armadas no mundo, mostra-se muito mais eficiente em termos de conquista dos objetivos de pacificação e incorporação cidadã de milhões de jovens à sociedade da “ordem” investirmos na desconstrução dos ambientes que possibilitam que territórios fiquem à mercê de quadrilhas, milícias e facções criminosas. Segurança Pública não pode ficar reféns de teses equivocadas, desprovidas de evidências e saturadas por um novo ciclo de doutrinação ideológica, mesmo que este seja de direita, que muitos confundem com o lado do “bem”.
O lado da Segurança Pública é a nossa Constituição e é nela que as instituições de Estado balizam suas condutas e missões.