Artigo – Segunda onda ou segundo pico? Fato ou fake

Por  Ten Cel PM QOS Médica Sônia Francisca de Souza, Chefe da Seção Técnica de Saúde da Diretoria de Saúde, e 2º Ten PM QOS Médico Guenael Freire de Souza, Infectologista Referência Técnica da STS/DS

 

A pandemia do COVID-19 trouxe à tona as incertezas dos antigos navegadores em águas desconhecidas. Os navegantes portugueses chamaram o lado esquerdo das embarcações de bombordo, porque era o lado que sempre avistava terra firme, no roteiro costumeiro rumo à África, na busca do caminho das Índias. Entre Portugal e o outro lado do mundo havia um mundo a ser descoberto. Guardadas as devidas proporções, o momento da pandemia e seu curso assemelham-se à realidade dos navegadores lusitanos, cada vez que deviam seguir um ponto à frente do último ponto tocado pela expedição anterior, pois o que estava à frente não estava escrito.

Desde o primeiro caso de COVID-19 em Wuhan, em meados de dezembro de 2019, muito conhecimento a respeito da pandemia foi adquirido, entretanto muito ainda a ser descoberto, compreendido, sobretudo no que diz respeito à prevenção e tratamento. A pandemia vem escrevendo sua história sinuosa, dia a dia nos dashboards do mundo. O comportamento do vírus tem frustrado os mais experientes epidemiologistas, exatamente pela falta de registros prévios do comportamento deste novo vírus.

Apesar das diferenças entre si, os vírus respiratórios têm um padrão recorrente de comportamento e as pandemias também. Quando avaliamos as principais oito pandemias desse tipo, desde 1700, notamos que pelo menos sete tiveram mais do que uma onda em alguma parte do mundo. É natural que oscilações nos números de casos ocorram, conforme o clima, a flexibilização e migração de populações geograficamente distintas, até que haja estabilização dos casos e o mundo conviva com o COVID-19 como uma endemia.

O aumento do número de casos ao longo do tempo, em representação gráfica, mostra ondas quando há um crescimento progressivo e posterior redução, em desaceleração semelhante à velocidade do crescimento. Quando há um crescimento exponencial, com aumento agudo e expressivo dos casos em pouco tempo, forma se o pico na representação gráfica. Neste momento, o sistema de saúde fica pressionado e podem ocorrer óbitos por desassistência.

O primeiro gráfico mostra as duas ondas da gripe espanhola, em 1918, com a segunda onda, coincidindo com o inverno europeu, surgindo de maneira avassaladora.

O segundo gráfico mostra a incidência da gripe espanhola em duas grandes cidades americanas da época, Filadélfia e Saint Louis. A primeira não aderiu às medidas de distanciamento e experimentou um pico, com muitos mortos.

 

 

 

O que temos a aprender com a segunda onda na Europa?

A primeira onda de COVID-19 na Europa começou a tomar forma a partir do início de março de 2020 e atingiu seu pico durante o mês de abril. Em maio, a situação estabilizou-se, com uma queda importante no número de casos e mortes pela infecção provocada pelo Coronavírus Sars-CoV-2. Segundo o Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças, mais recentemente a situação fugiu novamente do controle, com números alarmantes, sobretudo França, Portugal, Reino Unido, Holanda, Espanha, Bélgica e Itália. Várias são as hipóteses para essa segunda onda na Europa. Com a chegada do verão, os abalos econômicos e a queda na transmissão do vírus entre a comunidade, houve uma grande pressão para o retorno ao “normal”. Em vários países, a flexibilização foi ampla, pois se aboliu o distanciamento e o uso de máscaras obrigatório, soma-se a isso a retomada das aulas presenciais em escolas e universidades e a abertura de bares e restaurantes. Com o clima ameno, muitos europeus decidiram sair de casa e viajar. O fato de esta segunda onda atingir principalmente os mais jovens é, inclusive, indicativo de que a reabertura das atividades teve um papel decisivo neste processo, afinal trata-se da faixa etária que possui esse comportamento social mais acentuado. Um fato positivo nessa nova onda é que a mortalidade está menor. Dados do Centro de Pesquisa e Auditoria em Cuidados Intensivos do Reino Unido revelam que a taxa de pacientes com COVID-19 que morreram em até 28 dias após a internação caiu de 39%, do início da pandemia, para 27%, a partir de setembro.

 

Como a ciência explica esse novo aumento de casos?

  • Uma parcela significativa da população parece não ter tido contato ainda com o vírus. Em alguns países europeus, estima-se que a soroprevalência (a porcentagem de indivíduos que apresentam anticorpos contra o Sars-Cov-2) esteja abaixo de 15%. Traduzindo, os 85% restantes ainda estão vulneráveis à infecção COVID-19. Todavia, ainda é incerta a durabilidade de uma eventual imunidade à COVID-19, ou se todos os acometidos teriam uma resposta imune semelhante.
  • A sazonalidade do vírus faz com que ele sobreviva mais no inverno, coincidindo com o período onde há mais aglomeração de pessoas em locais fechados, facilitando sua transmissão. Hoje, o continente europeu vive a transição do outono para o inverno.
  • Outro aspecto é a maior disponibilidade de métodos diagnósticos. Meses após a primeira onda, com mais testes disponíveis, é possível uma maior detecção de casos, sintomáticos ou não.

 

Os casos de COVID-19 estão aumentando nas últimas semanas, porém é possível que o efeito sobre a mortalidade só venha a ser desvendados a partir do final do mês de novembro ou dezembro. Tal fato se explica pela latência de tempo entre a infecção e a necessidade de internação, e da hospitalização até o óbito, que pode levar até cinco semanas, portanto o impacto na população, com serviços de saúde a beira do colapso, é tardio.

 

A maior disponibilidade de testes afeta a taxa de óbitos?

 Sim. No início da pandemia, havia um número ainda limitado de kits de testagem, prioritariamente destinados aos casos mais graves. Imaginemos um exemplo hipotético de um local, no início da pandemia, com 100 indivíduos infectados, os hospitais e unidades de saúde só tinham capacidade de testar 10 deles. Suponhamos que, desses que foram diagnosticados, dois iam a óbito, perfazendo uma taxa de mortalidade de 20%. Agora imaginemos que nessa mesma localidade hoje é possível testar um número maior de casos, tanto quanto 100 indivíduos com Coronavírus. Se neste grupo duas pessoas evoluem para óbito, teríamos então uma taxa de mortalidade de 2%, dez vezes menor.

 

A experiência acumulada afeta a mortalidade?

 Provavelmente sim. A experiência acumulada nos últimos meses trouxe aprendizado. O “ficar em casa” pode ter sido desastroso para muitos pacientes. Novas tecnologias no manuseio ventilatório, inflamatório e trombótico dos pacientes com formas graves seguramente contribuem para uma menor letalidade pelo COVID-19. Hoje possuímos hospitais mais preparados, com protocolos assistenciais e de biossegurança mais robustos e mais profissionais treinados para a terapia intensiva.

 

Há como comparar o Brasil com a Europa? 

Não é possível fazer comparações precisas entre locais tão distintos. O Brasil é um país continental, com comportamentos epidêmicos peculiares. As curvas em cidades como Manaus, Belém e São Luís são semelhantes às curvas europeias, enquanto outras regiões do país tiveram curvas longas e achatadas ao longo de um período de tempo. Além disso, estamos entrando no verão, o que pode auxiliar no achatamento da curva da segunda onda.

 

Conclusões:

  • O vírus depende da proximidade entre as pessoas para continuar circulando, portanto medidas de distanciamento, uso de máscaras e lavagem das mãos continuam sendo importantes. O ar livre passa a ser o novo normal a nos proteger.
  • Um amplo programa de testagem é necessário para compreendermos a real situação da nossa população. Testar contatos sem sintomas pode ser uma estratégia.
  • Rastreamento dos contatos que estiveram suficientemente próximos a casos confirmados, para que eles sejam testados e, se for o caso, obedecer a uma quarentena.
  • A perspectiva de iniciarmos vacinação em massa é real, com várias pesquisas encerrando a fase 3, com resultados promissores. Há países implantando protocolos de vacinação para início ainda em 2020.
  • O uso de corticoides em doses baixas para casos hospitalizados, bem como o uso de anticoagulantes e o melhor manejo da insuficiência respiratória tem apresentado resultados importantes, na redução da mortalidade.

 

Os profissionais de saúde estão atentos às melhores evidências científicas disponíveis no momento para assessorar os Gestores e proteger a população dessa pandemia, ainda não totalmente conhecida.

 

 

 

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