AOPMBM Entrevista – Coronel PM Cleyde Cruz, Comandante da APM
Em entrevista, a belo-horizontina Coronel Cleyde da Conceição Cruz Fernandes, graduada em Direito pela Puc Minas e primeira Oficial mulher a assumir o Comando da Academia de Polícia Militar (APM) da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), conta sobre sua trajetória na corporação, os principais desafios e destaca os 40 anos de inserção da mulher na Polícia Militar.
Quando a senhora começou a trabalhar?
Comecei a trabalhar como menor aprendiz aos 17 anos, sendo digitadora no jornal Diário do Comércio, em Belo Horizonte. Aos 18, fui para a Elmo Calçados com o mesmo cargo, atuando no administrativo do escritório.
Como se deu sua entrada na PMMG?
Não sou filha de militar, e nem venho de uma família militar tradicional.
Minha história na polícia militar começou quando recebi um panfleto do concurso do cfo das mãos de um sargento da reserva, Sgt Edison dos santos, irmão de criação de minha mãe, o qual, hoje, o tenho como um tio querido.
Vinda de escola pública, não imaginava que poderia passar em um concurso público, ainda mais, sabendo que eram apenas 08 vagas para mulheres, mas ousei fazer minha inscrição.
Desacreditada, sequer fui conferir o resultado da primeira fase do concurso. porém, ao chegar em casa, depois de um dia longo dia de trabalho… (pois trabalhava durante o dia e a noite estudava em um cursinho preparatório para a UFMG), minha mãe disse-me que um policial havia deixado um comunicado para que me apresentasse na academia da polícia militar para iniciar a segunda fase do concurso.
Costumo dizer que eu não escolhi a polícia militar, foi a polícia militar que me escolheu. Isto porque, não sabia que passaria por exames e testes exaustivos até que pudesse alcançar a classificação final do concurso e muito menos que o CFO duraria 4 anos; mas assim quis o senhor meu Deus.
Lembro-me como se fosse hoje, a matrícula ocorreu no dia 31 de janeiro de 1992. Era uma sexta- feira, e o candidato após a matrícula, deveria se apresentar na segunda-feira próxima, para o início do curso.
Após a matrícula, retornei as pressas para casa, pois meu pai receberia alta do hospital, onde tratava um câncer e ainda não sabia da boa nova. Porém, ao chegar em casa, veio a notícia de seu falecimento. Meu pai faleceu sem que soubesse que eu havia me ingressado na polícia militar.
Assim, em meio de um misto de alegria e tristeza, no dia 03 de fevereiro de 1992, transpunha eu os umbrais da Academia, aos 20 anos de idade, para iniciar o Curso de Formação de Oficiais.
Na Academia, me apaixonava a cada dia pela instituição, foi amor à primeira vista, é onde me realizo profissional e pessoalmente.
Hoje me considero filha da Polícia Militar e constituí junto ao marido Cel Cássio Soares e meus filhos, Samuel e Guilherme, uma família militar tradicional.
Qual foi sua experiência após formada?
Após concluir o curso, cumpri o aspirantado no 16º BPM, meu sempre BRP (Batalhão de RadioPatrulhamento), onde fiquei até ao posto de 1º Tenente, atuando como CPU, com turnos durante o dia e alguns à noite, mas me apaixonei pelo turno noturno e pedi ao Comandante do 16º BPM, à época, para me fixar à noite, o que foi autorizado. Trabalhei durante dois anos e meio no 4º primeiro turno como CPU rodando e fazendo a gestão da 21º BPM Companhia.
Concomitante com os serviços de CPU, era também a Chefe do posto de recrutamento e seleção e posteriormente fui transferida para Companhia Escola.
Nascia então a minha vocação para a educação profissional na Polícia Militar.
Para onde a senhora foi depois?
Passados três anos, recebi uma ligação do então Comandante da Academia, Coronel Ari de Abreu, dizendo que estava solicitando minha transferência para a APM, uma vez que naquele momento não havia nenhuma Oficial feminino nos quadros do Curso de Formação de Oficiais. Assim, fui alçada para o desafio de transformar homens e mulheres em Oficiais da nossa tropa de Tiradentes.
Dediquei-me por quatro anos ao Curso de Formação de Oficiais, sendo dois deles como chefe de curso do curso líder, o que hoje me enche de orgulho ao ver oficiais de sucesso que se tornaram.
Hoje retorno a Academia de Polícia Militar, como a primeira mulher a comandar esta escola do saber.
Até quando a senhora ficou na Academia?
Fiquei na APM até a promoção à Capitão, ocasião em que fui designada para Diretoria de Recursos Humanos (DRH), onde permaneci por nove anos como Oficial subalterna. Passei por todas as funções da Diretoria, exceto a função de secretária da CPP e CPO. (Comissão de Promoção de Praças e Oficiais, respectivamente).
Até que veio um convite do Coronel Robson Campos para instalar à 17ª Região, na cidade de Pouso Alegre, em 2009. A Região estava sendo criada para receber parte da 6ª RPM, até então responsável por todo sul de Minas. Aceitei o desafio e o meu papel foi estruturar a primeira seção da Região. Não foi fácil criar uma Região do nada, pois sequer tínhamos uma sede; mesmo sendo desafiador, foi uma experiência fantástica em minha carreira, pois pude vivenciar as dificuldades de se fazer segurança pública no interior do Estado.
Como foi atuar na 17ª RPM?
A divisão do sul de Minas em duas Regiões, á época, era realmente necessária, pois uma extensão territorial muito grande, com enorme desafio de gestão administrativa e operacional. Na área de P1 não era diferente. Existiam dificuldades de gerenciar o efetivo em toda aquela extensão e herdamos muitos processos administrativos disciplinares em andamento. Tive que trocar o pneu do carro andando, pois além de instalar a estrutura da RPM tínhamos que continuar prestando o serviço. A recompensa era poder morar numa cidade com excelente qualidade de vida e criar os filhos. Pude conhecer a realidade do interior durante três anos e meio, as dificuldades de estrutura, a distância entre as cidades, o apoio operacional de uma cidade para outra. Havia grandes eventos, ocorrência de alta complexidade, o que me trouxe esse olhar do interior que acho que todos nós, principalmente os oficiais, deveríamos ter. Esse olhar de como é fazer polícia no interior.
E em seguida?
O retorno a Belo Horizonte ocorreu em 2013, e fui designada para a função de subchefe do Centro de Administração de Pessoal, o qual permaneci por dois anos. Em 2015, Fui promovida a Tenente Coronel e assumir o Centro de Recrutamento e Seleção (CRS), sendo uma experiência eminentemente de gestão, pois exigiu mudar os processos, melhorar a prestação de serviços e a eficiência dos concursos e processos seletivos. Durante minha gestão, ocorreu o maior concurso da história da PMMG, pois bateu o recorde de inscritos, com cem mil candidatos; isto porque seria o último ano em que não exigiria o ensino superior para o ingresso ao cargo de Soldado. Encerrado o concurso, fui chamada para chefiar o Centro Odontológico da PMMG (COdont), na área da saúde.
Como foi o trabalho no CODont?
Nunca havia trabalhado na área de saúde na Instituição. Em poucos meses me vi apaixonada pela atividade e mergulhei a fundo nos meandros do Centro Odontológico. O COdont estava com alguns problemas de gestão, cheguei em meio a um processo de tomada de contas em andamento, muitos oficiais dentistas se aposentando; os desafios constantes. Todavia, seria alí um dos melhores lugares que já trabalhei na Instituição, pois apesar dos problemas, a equipe era muito competente e muito dedicada, e assim os desafios foram superados com leveza. Foi uma experiência gratificante, uma vez que a área de saúde nos possibilita ajudar o outro, um colega de farda, um parente de militar, um veterano, ou seja, a nossa família militar. Pude conhecer um pouco dessa área; é outra Polícia dentro da Polícia. A área da saúde tem todas as suas peculiaridades e demandas, é muita gente que atendemos e muitos recursos financeiros a serem bem geridos.
Então?
Estava com saudade do operacional e aí recebi o convite para comandar o Batalhão de Polícia de Guardas.
O Batalhão passava por um momento de transição, pois sua sede foi transferida do Palácio da Liberdade para a nova sede do executivo: denominada de Cidade Administrativa. Pela sua arquitetura, as curvas de Niemeyer e seus longos jardins propiciava um local de manifestações populares. No ano de 2019, cheguei a comandar cerca de 20 grandes manifestações populares, inclusive a que envolveu integrantes da segurança pública, em que ocorreu o fechamento da rodovia MG10, que margeia a sede do executivo; fechamento este que durou quase 8 horas, momento de muita tensão, mas também de muito aprendizado. Comandar o Batalhão de Guardas, foi marcante também, pois comemoramos naquele ano, o cinquentenário da Unidade, cuja medalha leva o nome do seu primeiro comandante Cap QOR Raimundo Valério Dias Lage.
Qual foi o aprendizado com o Batalhão de Guardas?
Ali eu pude perceber que nós, mulheres, precisamos saber gerenciar tropa. Tive que gerir não só a minha tropa do Batalhão, mas aquelas especializadas que nos davam apoio em eventos de segurança pública. Eles nos testavam enquanto legítima para comandar uma operação daquela envergadura. Foi uma experiência importantíssima, pois o Batalhão de Guardas está inserido no Comando de Policiamento Especializado, o tempo inteiro tendo esse contato do apoio mútuo, ocasião de muito aprendizado.
E em seguida?
Logo depois veio a promoção à Coronel e já assumi de cara a Diretoria de Finanças (DF), em um momento orçamentário-financeiro complicadíssimo, pois o Governo de Minas passa uma crise financeira sem precedentes, agravada ainda mais pelo declínio de arrecadação de impostos em consequência da pandemia do Covid 19. Apesar do momento ruim, conseguimos entregar a Diretoria de Finanças com redução 30% do seu déficit financeiro, graças a melhor gestão dos recursos e busca de soluções orçamentárias com outros órgãos. Fiquei na DF apenas seis meses, pois o Comandante Geral, em Janeiro de 2021 me confiou o desafio de Comandar a Academia de Polícia Militar.
Como a senhora analisa essa posição?
É uma distinção, pois poucos são os escolhidos para Comandar a Academia de Polícia Militar.
Por ter sido Oficial da Academia nos anos de 1998 a 2000, é natural ter vontade de retornar a esta Escola em uma posição de comando. Então é um momento ímpar que estou vivendo aqui.
Espero que meu comando possa ser lembrado por ter alçado a Polícia Militar de Minas Gerais no protagonismo de estudos em segurança pública, por meio de publicações de pesquisas na área de ciências policiais.
O que mais marcou a senhora durante todos esses anos?
A carreira foi marcada por bons momentos, e por sorte foram a maioria; porém foi um momento ruim que mais me marcou: a greve de 1997. Eu era Tenente no 16º BPM e saímos do paraíso ao inferno em minutos. No dia 24 de junho, por volta das 9 horas, o Comandante do Batalhão determinou que assumisse o turno do CPU, no lugar de outro colega, temendo represálias por parte da tropa. Os militares do turno de serviço, por volta das 10h retornaram ao Batalhão dizendo que não iriam mais atender ocorrências. Naquele dia fatídico ouvi muitos desaforos como “quartel não é lugar de mulher”, mas me mantive firme e acompanhei o deslocamento da tropa até a Praça da Liberdade, onde ocorreu o desfecho do movimento com a morte do Cb Válério. Passei por sentimentos de medo e impotência, e cheguei a pensar que “a Polícia acabou”.
Quais as principais dificuldades que a senhora já enfrentou ao longo da carreira militar?
Falar que não existe dificuldade para mulher dentro da instituição é uma mentira. Ela existe. A gente supera esses obstáculos diariamente. Entendo que a instituição ainda hoje nos vê como um sexo frágil, tendo que escolher o que podemos ou não podemos fazer na Corporação. Lembro-me da época em que era Tenente e me inscrevi para um curso de tiro, mas não me incluíram e disseram que não era o momento. Percebi claramente que era por questões de gênero, mas aos poucos vamos superando estas questões. Hoje é possível ver diversos avanços da mulher na Polícia Militar, haja vista que as mulheres atuam em todas as áreas da PMMG, como na cavalaria, choque, POG, canil, COMAVE, incluindo a mim e a Cel Silma Regina, que somos as primeiras mulheres a chefiar a APM e Corregedoria.
Qual o simbolismo dos 40 anos de inserção da mulher na PMMG?
A mulher na Polícia Militar foi muito bem definida, pelo nosso Comandante-Geral, em duas palavras: força e leveza.
Este nos parafraseou com o motor de uma aeronave que não basta ter potência para decolar, este há de ser leve, pois seu peso pode comprometer o voo.
Aproveito para agradecer ao meu comandante, Coronel Rodrigo de Sousa Rodrigues, pela coragem em designar uma mulher para a academia, e porque não dizer visionário como foi o Cel Coutinho, em 1981 quando autorizou o ingresso de mulheres à corporação de Tiradentes.
Permitam-me ainda lhes pedir que esta data seja um divisor de águas para retirar a invisibilidade da mulher na corporação, tamanho tem sido a preocupação deste atual Comando com as questões da profissional feminina, seja por dar igualdade de oportunidades, seja por pensar políticas internas voltadas para a mulher, a exemplo o estudo de um modelo de armamento próprio para a policial feminina.
Há diferenças entre homens e mulheres militares?
Não vejo diferença entre obrigações e tratamento e responsabilidade, não mesmo. Vejo sim, às vezes, uma certa desconfiança em algumas funções para escolha de mulheres.
Qual a importância em mulheres ocuparem espaços de trabalho, liderança na sociedade?
Tenho um pensamento particular. Não gosto de levar as questões para o lado do gênero mulher. Quando massificamos a questão de gênero mulher, parece que estamos brigando pela existência. Mas na verdade nós já existimos. A mulher tem, sim, que alcançar postos de trabalho por sua competência e por sua força de trabalho em lutar para conseguir conquistar, como todos seres humanos. Mas ela não tem que fazer isso por ser mulher. Eu vejo a importância da mulher chegar a alguns postos e lugares da sociedade por sua diferenciação em enfrentar determinados problemas e assim conseguir melhorar a vida de todos, não só das mulheres. Não estou dizendo que não exista problemas de gênero, a própria violência doméstica demonstra o contrário, mas que as mulheres não podem chegar em certos postos e defender somente isso, pois só fomenta ainda mais a diferença entre gêneros. O que a gente tem que fazer é estarmos todos juntos em prol da própria sociedade.
Que conselho a senhora daria às mulheres que estudam para entrar nas corporações militares e àquelas que nas instituições se encontram?
Para as que almejam, continuem firmes neste propósito, pois é realizador a atividade policial. As que já são policiais, se tornem competentes. Competente no sentido de realmente aprender a atividade policial em toda a sua essência: não aprenda só a atirar, aprenda a atirar com os dois olhos abertos. Não aprenda a apenas algemar, aprenda a quebrar a resistência para algemar. Aprenda a arremessar uma granada, a fazer uma intervenção de choque, a montar um cavalo, a dirigir veículo em alta velocidade durante uma perseguição. Não tenham medo de experimentar tudo que a instituição pode lhes oferecer. Foi o que eu fiz. O treinamento é importante porque é com ele que fazemos bem nossa atividade e nos protegemos. Sejam competentes porque, assim, não existirá o argumento de que você não pode exercer a atividade A ou B, por não terem legitimidade.
O que é ser mulher policial para a senhora?
Não há nenhuma diferença entre ser policial masculino ou feminino, ser policial é ser policial. Mas, confesso que ser policial sendo mulher traz um orgulho maior porque rompemos gerações, paradigmas, estereótipos. Esperam da mulher que ela seja frágil, medrosa e aí percebem que não, somos fortes, podemos atuar de forma firme em qualquer setor da instituição.
Ser mulher policial é ser forte, sem perder a leveza.