Artigo “Maternidade Sem Culpa”

MATERNIDADE SEM CULPA

Eliene Lima de Souza

 

Todos nós sabemos que errar é humano – errar é uma característica do ser humano!

Então, por que será que somos tão exigentes com as mães? Por que insistimos em cobrar das mulheres que são mães uma performance inatingível? Na verdade, toda mulher quando se torna mãe já se incumbe de se atribuir uma série de exigências sobre seu próprio comportamento e, desta forma, não precisa de ninguém além dela mesma para lhe impor cobranças e padrões a serem seguidos.

Desde o momento em que se percebe grávida, a mulher se transforma. Começando pelo seu corpo, que passa a apresentar mudanças quase que diárias, a gestação de um filho provoca impactos em todas as dimensões da vida da futura mãe, e as emoções passam a exercer um domínio ainda mais intenso sobre suas atitudes. Para muitas, a alegria de poder gerar um filho é compreendida como um privilégio, uma dádiva divina se materializando através dela. Para outras nem tudo são flores, ainda que já tenha decidido que a maternidade seria uma escolha em algum momento. Independente de qual seja o cenário que recepciona uma gravidez, é inegável que muitas pressões e cobranças também começam a surgir.

Eu ousaria dizer que, ainda nos tempos modernos, a maternidade é algo esperado para as mulheres e entendido como um instinto que deve ser seguido. Sendo assim, muito antes de se concretizar, a maternidade já se apresenta como algo inexorável e da qual não se pode fugir. Existe alguma dúvida de que algo que nos chega desta forma, carregue em si o peso característico da imposição? Mesmo diante dos discursos vigentes há algumas décadas sobre a liberdade de decisão da mulher, aliado ao mote atual que diz “meu corpo, minhas regras”, declarar sua decisão consciente por não ter filhos ainda desperta olhares desconfiados e comentários que desqualificam essa mulher como alguém que está negando aquilo que a natureza espera dela. Portanto, apesar de toda a modernidade que experimentamos em nossa sociedade, eu me pergunto: será que as mulheres que decidem ter filhos o fazem em alinhamento com seu próprio desejo? Ou será que esta é mais uma questão que nos atravessa e já vem autodeterminada sem que sequer nos permitamos questionar?

Comumente ouvimos a frase “nasce uma mãe e nasce, junto, uma culpa”. Quando me atento para todos os aspectos sociais que permeiam a maternidade, compreendo facilmente porque a mulher que se torna mãe é a primeira a se culpabilizar por toda possibilidade de falha que ela possa vir a cometer. Os meios de comunicação são implacáveis ao lembrar as mães sobre a grandeza de sua missão, sobre a sua importância para a manutenção da espécie e, desta forma, indiretamente derrama sobre elas o peso da infalibilidade. Mesmo sabendo que os erros ajudam no processo de crescimento e evolução humana, as expectativas culturalmente disseminadas são no sentido de que um filho possa ser gerado, parido e cuidado com o mínimo possível de intercorrências.

Mas.. onde está a mulher que havia ali, antes de se tornar mãe? Aquela mulher que tem seus sonhos, projetos, relacionamentos, lugares, compromissos, vivências, desejos? Para onde ela vai quando a vinda de um filho é anunciada? A vida de uma mulher deve parar para que ela traga à luz uma outra vida? Qualquer pessoa disposta a um mínimo de questionamento irá entender que a mulher por detrás da mãe não deixa de existir, que ela apenas dá um passo para traz e se coloca em segundo plano enquanto se ocupa de seu projeto mais audacioso: gerar e trazer à luz um filho seu.  No entanto, as exigências físicas, emocionais e sociais são tão intensas que é muito comum a sensação de perda de identidade, o sentimento de não se saber mais quem se é, como será a vida quando se voltar da maternidade com aquele pedacinho de amor nos braços – mas sem as enfermeiras e toda a segurança que estar protegida num hospital pode trazer.

Meu filho tinha poucos dias de vida quando uma conhecida minha me falou palavras libertadoras para responder a uma pergunta que ela mesma me fez. A pergunta foi: “você deve estar pensando que sua vida agora é só fralda e mamadeira, né?”. Eu me lembro de olhar para ela, bastante surpresa, e dizer: “e não é não?”. Ela, então, apesar de ser bem mais jovem que eu e ter sido mãe alguns anos antes e sem qualquer planejamento, me disse tudo o que eu precisava ouvir naquele momento: “não! Isso é só uma fase e logo vai passar”. Por mais óbvio que isso possa parecer, eu não tinha tido a tranquilidade para tirar essa conclusão sozinha. Eu fui uma dessas mães com uma carreira em andamento, o relógio biológico já se fazendo notar, e que quando se viu grávida, apesar da imensa alegria que sentiu, viu suas referências se esvaindo.

Em relação às mulheres que tem esse perfil que relatei acima, eu acredito que a cobrança ainda é maior. Afinal, ter nível superior de escolaridade, desenvoltura profissional e social, faz com que as pessoas olhem para elas como alguém que tem menos chance de cometer erros. E assim, toda a construção pessoal que se faz acaba por se tornar mais um ponto de pressão sobre si, mais uma cobrança que, como eu disse, já se inicia na cabeça da própria mulher. Quanto mais títulos e símbolos de sucesso se alcança, mais expectativas se cria sobre si e nos outros, fazendo com que todas aquelas inseguranças e dificuldades iniciais, tão normais e esperadas para qualquer mãe, passem a ser vivenciadas como o fim do mundo.

E onde fica, então, o caráter pedagógico do erro? Do mesmo modo que sabemos que errar é humano, não sabemos que a partir dele podemos adquirir aprendizado? As ciências humanas já nos asseguram isso, e a observação do próprio desenvolvimento físico e emocional das crianças também nos permitem testemunhar que é a partir do tombo que elas aprendem a se levantar e a dar os primeiros passos. Se os filhos não tiverem, em seu processo educacional, demonstrações de que todo ser humano é passível de falha, como irão se acolher quando não forem perfeitos e como irão lidar com a falibilidade dos outros?

Pensando assim, quem sabe não seja mais sensato e real, neste mês das mães, deixar um pouco de lado a exaltação deste amor incondicional que fantasiosamente se homenageia e passarmos a acolher e apoiar, de fato, as mães, em suas dificuldades, limitações e humanidades? Não seria um grande presente dizer a elas que entendemos que este é um papel social extremamente exigente e que elas tem todo o direito a se sentirem impotentes, cansadas e até desmotivadas com a maternidade? Esta seria uma grande contribuição para a redução de culpas e, consequentemente, da autopunição que muitas mães se infringem, pois, como sabemos, uma mulher não atinge a divindade ao se tornar mãe, e se todas as dores que ela carrega não forem bem elaboradas, podem trazer consequências indesejadas àqueles a quem dela se espera cuidado e proteção.

 

Belo Horizonte, 02 de maio de 2022.

 

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