OBSESSÃO FATAL

O episódio mais recente ocorreu domingo, em Montes Claros, no Norte do estado, onde Paulo Pimenta Freire, de 22 anos, estudante de biomedicina, foi morto a tiros depois de uma briga com integrantes de uma torcida rival. Até agora, a polícia não tem pistas dos dois homens que mataram o rapaz no meio da rua no Centro da cidade.

O Estado de Minas foi em busca de histórias em que a truculência roubou do esporte preferido dos brasileiros o romantismo e a alegria. O quadro é o mesmo em todos os lares onde as vítimas moravam. A tristeza sem consolo quando os parentes falam das vítimas. Na hora do almoço, o prato principal é a saudade. Nas reuniões em torno da TV, prevalece a certeza de que o lugar vazio no sofá nunca mais será ocupado. São casos de jovens trabalhadores com objetivos traçados, mas que tiveram o caminho interrompido pela fúria dos adversários.

As palavras da aposentada Terezinha Pereira Anastácio, de 85 anos, resumem a extensão da perda: “Quando me lembro dele, tenho vontade de chorar e gritar. Era minha companhia, era minha joia. Sinto muita falta, já pedi para a imagem dele sair da minha presença, mas não sai”, lamenta, aos prantos, a avó de Lucas Batista Anastácio Marcelino, que aos 20 anos caiu com um tiro no pescoço na Avenida Silviano Brandão, no Bairro do Horto, Região Leste de Belo Horizonte, quando se preparava para acompanhar o jogo do clube do coração, em 15 de fevereiro de 2009. Ele foi vítima de dois homens que passaram em uma moto atirando contra um grupo de torcedores.


TUDO ACABADO

Dolorosas também são as memórias do aposentado João Jacinto Teixeira, de 63, que pensou em desistir de tudo quando o filho Washington Sebastião Teixeira, de 26, foi baleado na cabeça, quando esperava o ônibus em um ponto da mesma Silviano Brandão, em 5 de agosto de 2005. O tiro partiu de um carro. Dentro dele estava uma pessoa que disparava indiscriminadamente contra torcedores adversários. “A gente não consegue mais ser a pessoa que era. Há uns dois anos não tinha vontade de viver, entrei em depressão e quase morri. Tudo havia acabado”, desabafa João Jacinto, com a voz embargada. São dessas memórias que essas 13 famílias alimentam a saudade. O único consolo, se assim se pode definir, para quem perdeu um ente querido em decorrência de um simples jogo de futebol, é ver a Justiça ser cumprida. Mas, condenações são poucas e, quando ocorrem, podem ser proteladas por anos.

MAIS DE 40 ANOS DE CONFRONTOS

Registro da primeira briga entre torcedores de clubes rivais em minas é de 1967. Desde então, foram registradas 13 mortes no estado como resultado do fanatismo pelo futebol. Segundo especialista, vândalos são minoria, mas conseguem se impor

“Você imagina que somos movidos a quê? Se a gente não fizesse isso nos jogos de futebol, acabaria fazendo em algum outro lugar. Tá na gente, né? A violência. Todos nós temos por dentro. Ela só precisa de um motivo, de uma válvula de escape aceitável. E não importa qual. Basta alguma coisa. É quase uma desculpa”

>> Trecho de depoimento de um hooligan inglês publicado no livro “Entre os vândalos”, de Bill Buford Pesquisa feita pela professora de sociologia do esporte da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Heloísa Reis a respeito da violência motivada pela paixão pelo futebol mostra que, desde 1967, data do primeiro registro de confronto entre torcedores rivais, até março de 2010, 11 pessoas morreram em Minas Gerais, em especial na capital e na região metropolitana, vítimas das torcidas adversárias. O trabalho não leva em conta as mortes de Otávio Fernandes, de 19 anos, assassinado em novembro do ano passado quando saía de um evento de lutas marciais, e de Paulo Pimenta Freire, de 22, morto em Montes Claros no domingo, pois ela também não ocorreu nas imediações ou dentro de estádio de futebol. Assim, o número se elevaria para 13 vítimas da insanidade de torcedores, mesmo número do Rio de Janeiro e atrás das 21 mortes de São Paulo, líder nacional, de acordo com o levantamento de Heloísa Reis. A professora, apesar de ver uma tendência de redução da violência no contexto do esporte, aponta para uma falha crucial: a impunidade, que contribui para o surgimento de novos casos.. “A impunidade e, mais que isso, a sensação de impunidade são um incentivo a brigas e agressões. A impressão é de que no Brasil as lei são frouxas. Pessoas não são julgadas e, quando o são, ficam presas pouco tempo. Esse é um dos principais fatores de geração de violência, que encoraja pessoas a cometer atos ilícitos”.

MINORIA NOS ESTÁDIOS

O professor do curso de educação física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (Gefut), Sílvio Ricardo da Silva, ressalta que os indivíduos violentos são minoria nos estádios e que os brigões têm rompantes de agressividade em vários ambientes, seja em estádios, no círculo familiar ou no trabalho. “Na verdade, a questão da violência está posta na sociedade desde que ela existe. Os esportes, de uma maneira geral, foram criados para dar vazão a essas manifestações, sempre controlados por regras”, explica o professor. Ele cita registros de 1917 que tratam dos “sururus”, como eram chamadas as brigas entre torcidas. O agravante é que, na visão de Silva, a sociedade hoje está abarrotada de armas, o que aumenta o potencial de mortes nos conflitos.

Heloísa Reis afirma que a situação de rivalidade exacerbada, principalmente por parte das torcidas organizadas, ganhou corpo na década de 1980, com a mercantilização do futebol. “Na medida que o futebol se mercantiliza e se inflaciona, faz aumentar a violência, pois os torcedores passam a agir com revolta vendo que as condições de seu clube divergem dos investimentos feitos em outros”, analisa a professora. “O esporte deveria servir à paz…Por causa de um agasalho do time de sua admiração, o estudante de biomedicina Paulo Pimenta Freire, de 22 anos, morador de Montes Claros, no Norte de Minas, foi assassinado a tiros na madrugada de 29 de maio, depois de se desentender com o dono de uma festa na qual estava, e que seria torcedor adversário, num apartamento na Região Central da cidade. Para os parentes de Paulinho, como o estudante era chamado em casa, a morte não tem explicação, pois o rapaz era um torcedor tranquilo, que via as partidas pela TV, em bares ou em casa e nunca havia se envolvido em confusão. Como conta o pai do estudante, o funcionário público e pastor Danilo Freire, Paulinho passou a se interessar mais por futebol por influência do tio, médico, que durante muitos anos trabalhou no departamento médico de uma das equipes de futebol de Belo Horizonte. Foi ele quem deu de presente a Paulinho o agasalho que o estudante usava quando foi assassinado. A brutalidade do crime, ainda não assimilada pela família, faz Danilo refletir sobre o que ocorre nos campos de futebol: “O esporte deveria ser usado em favor da paz, mas, hoje, os jovens estão sem referência. Aí, recorrem ao futebol como maneira de extravasar, para fomentar a rivalidade. Acabam por seguir o caminho da violência”, avalia o pastor, que espera da polícia a identificação dos autores do crime. O que se sabe até agora é que Paulinho teve um desentendimento na festa, onde foi agredido, saiu do apartamento, encontrou quatro amigos que torcem pelo mesmo time que ele e, juntos, resolveram voltar à festa. Poucos metros adiante, reencontraram o dono do apartamento e mais um torcedor rival, reiniciando as discussões. Nesse momento, chegaram dois homens em uma bicicleta, um deles sacou um revólver e disparou três vezes contra Paulo, que foi atingido na cabeça e no peito, morrendo na hora. Amigos do estudante também não entendem o crime, pois Paulinho, para eles, era “de paz” e não procurava brigas. Personagens

‘‘Campo é para torcedor, não para vândalos…

>> Lucas Batista Anastácio Marcelino, 20 anos,

>> Morto em 15 de fevereiro de 2009, no Bairro Horto

A vontade que aperta o peito de Terezinha Pereira Anastácio, de 85 anos, é poder mais uma vez dançar à beira do fogão com o neto, Lucas Batista Anastácio Marcelino, morto a tiros aos 20 anos na Avenida Silviano Brandão, ao lado de outros torcedores que iam ao estádio. Terezinha também sente falta de cozinhar as batatas fritas e o tropeiro para aquele a quem chama de filho. Sem conter as lágrimas, a senhora que oferecia o colo para o neto aconchegar-se está só. “Desde que o Lucas nasceu eu o criei. Lembro de tanta coisa… Ele era meu companheiro”, lamenta a mãe de oito filhos, todos vivos. “O único que perdi foi ele”, diz a anciã. A avó tinha orgulho do neto que cedo buscou uma profissão, a de cabeleireiro. Dona Terezinha também não se esquece das viagens que fez com Lucas. “Para mim, acabou. Na verdade, nem meus filhos eram como ele. Não perdi um neto, perdi um filho”, emociona-se a senhora, que roga todas as noites para que a “joia” esteja em um bom lugar. Lucas era muito conhecido no Bairro Boa Vista, na Região Leste de Belo Horizonte, pela presença na igreja e pela atenção dispensada às crianças e idosos, dos quais cortava o cabelo de graça uma vez por mês. A tia de Lucas, Ana Maria Anastácio, 51 anos, que ensinou o ofício ao sobrinho, cobra, e muito, uma resposta da Justiça. “Campo é pra torcedor, pra família, não é local de vândalos. Marginal é dentro de cadeia. No entanto, os bandidos ficam soltos”, exalta-se. “Nós não temos boas condições financeiras, queremos nos divertir, e dentre o que temos de melhor está o futebol. Os vândalos estão tirando isso da gente”, completa Ana Maria. ‘‘Com a violência, a pessoa tem que torcer e ficar calada… >> Otávio Gonçalves Fernandes, 19 anos

>> Atacado em 27 de novembro de 2010, na Região da Savassi

O balconista Otávio Gonçalves Fernandes era, desde criança, um apaixonado pelo seu time favorito e filiado a uma torcida organizada. Mesmo assim, não se envolvia em confusões ou brigas. “O meu filho era uma pessoa muito caseira e tranquila”, assegura a auxiliar de serviços gerais Mônica de Cássia Fernandes, de 39 anos, mãe do rapaz, que, aos 19 anos, morreu espancado por torcedores rivais em frente a uma casa de shows, na Avenida Nossa Senhora do Carmo, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, depois de um evento de lutas marciais. Mônica, que também gosta muito de futebol, conta que desde 27 de dezembro, data da morte do filho, não se interessou mais pelos jogos do seu time. “Não assisto nem pela TV, porque me lembro do meu filho.” Lamenta o fato de que, hoje, torcer virou um risco. “Com a violência, a pessoa tem que torcer e ficar calada, para não ter problemas.” ‘‘Só queria dar um abraço…. >> Ronaldo Pedro Ferreira, 26 anos

>> Atacado em 6 de maio de 2007 na porta do Mineirão

“Só queria dar um abraço e um beijo nele, coisa que não fazia muito enquanto ele estava vivo”. A frase é de Eliane Francisca Ferreira, de 32 anos, irmã de Ronaldo Pedro Ferreira, que aos 25 foi espancado na entrada do Mineirão, em 6 de maio de 2007. Sem saber, ele e quatro companheiros entraram pelo portão destinado à torcida adversária e foram atacados por um grupo de aproximadamente 20 torcedores rivais. Dois dias depois, Ronaldo morreu no Hospital João XXIII, vítima de traumatismo craniano. ‘‘Tudo está mais difícil…

>> Washington Sebastião Teixeira, 26 anos,

>> Morto em 5 de agosto 2005, no Bairro Horto

O lugar vazio no sofá da sala faz brotar um turbilhão de lembranças em João Jacinto Teixeira, de 63 anos, pai de Washington Sebastião Teixeira, que aos 26 anos foi vítima da rivalidade exacerbada entre as torcidas. Era ali que pai e filho discutiam escalações, triunfos e fracassos do time favorito. Um tiro matou Washington num ponto de ônibus, quando ele se preparava para ir ao Mineirão. “Tudo está mais difícil. A gente não é mais alegre como era. Hoje, evito fazer muitas coisas que ele gostava, como assistir futebol, pois me lembro de tudo”, desabafa o pai.

OS CINCO PASSOS DA TRAGÉDIA

PAIXÃO

Nas histórias contadas pelo Estado de Minas, a maioria das vítimas aprendeu a amar um clube com a família. Desde pequenos apresentados à cultura do futebol, passaram a conviver e a sentir o esporte, sofrendo e alegrando-se como a maioria dos torcedores. OBSESSÃO

Na adolescência, a paixão ganha contornos mais fortes, o clube passa a ser visto como componente essencial da personalidade. Todos os esforços são válidos para acompanhar o objeto de adoração em que se transformou o time do coração, como longas viagens. Nessa fase, simples gozações podem ser a faísca para acender o barril de pólvora. VIOLÊNCIA

Nas histórias contadas, os personagens acabaram vítimas de fanáticos, sujeitos cuja agressividade natural é libertada, sem qualquer freio, no contexto da rivalidade futebolística. Mãos e pés, cavaletes ou armas de fogo, tudo é válido na guerra criada pelos torcedores violentos. MORTES

Em Minas, desde 1967, tomando como base levantamento da professora da Unicamp, Heloísa Reis, 13 pessoas foram assassinadas em nome da obsessão. A maioria dos personagens cujas histórias foram contadas, de acordo com familiares, era de trabalhadores e avessos ao conflito. IMPUNIDADE Dos 13 casos, em quatro os réus foram inocentados ou receberam penas alternativas que não a prisão. Em dois crimes a polícia sequer conseguiu identificar os agressores. Cinco processos ainda tramitam na Justiça, alguns com decisões que chegarão depois de 10 anos. Em dois casos houve condenação e os réus cumprem pena.

Jornal Estado de Minas
Domingo, 5 de junho de 2011

Thobias Almeida

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