DA ACADEMIA PARA A POLÍCIA A PÉ
Em duplas, os recrutas caminham pelas ruas, durante seis horas por dia, fazendo o policiamento a pé na cidade – o chamado “PA” está na origem da Polícia Militar (PM) ostensiva. No passado, eles eram conhecidos como “Cosme e Damião”. A maioria dos recém-formados está nessa função em várias companhias de polícia da cidade. Muitos queriam já estar em uma viatura, ouvir o barulho da sirene, sentir a adrenalina do risco, confessam quase que em segredo, mas terão que ficar no PA por pelo menos um ou dois anos: “O que são dois anos, se temos 30 anos pela frente?”, diz um novato obstinado com sua longa carreira.
Antes de reprimir o crime, essa turma vai aprender a prevenir, “batendo perna”, interagindo com a sociedade e experimentando o poder da farda. Na caminhada, além do tempo para compartilhar mil assuntos, a dupla serve à população com informações de endereços – os que sabem, já que muitos são do interior de Minas –, e viram até psicólogos, dizem, de “transeuntes”, vocabulário muito usado por eles para indicar pedestres.
Com coletes fluorescentes, eles acreditam que estão inibindo os bandidos. “Não vamos ser acionados depois que o crime aconteceu, estamos aqui visíveis”, afirma Thales Vieira, 23. Ele e sua dupla, Matheus Rodrigues, 23, cumprimentaram um senhor no ponto de ônibus, que, mal-acostumado à situação, chegou perto da reportagem depois e disse desconfiado: “Polícia, quando a gente precisa, não aparece”.
A corporação da época da ditadura era de baixo relacionamento com a sociedade, sentia-se por cima, considera o professor da Academia de Polícia Jorge Tassi. “Em uma situação de crime, o policial aborda vítima ou autor, é uma polícia reativa. Já a policia comunitária é proativa, é da sociedade, não da corporação. Se o cidadão não confia na polícia, não existe transferência de informação”, explica Tassi, que pondera: “Ainda falta muito para termos, na prática, policiais comunitários”. Ele lembra que esses mil soldados novos serão recebidos por outros 35 mil com formações diferentes.
Segundo o capitão Raphael Damásio, 32, coordenador do Curso de Formação de Soldados, o comando atual valoriza muito o policiamento a pé. “Essa aproximação com a comunidade é uma evolução cultural dentro da instituição”, avalia ele, ressaltando que “a clientela da PM é o cidadão de bem, o público ordeiro”.
Prática. Nas ruas, as abordagens que os recrutas aprendem a fazer na academia para verificar suspeitas são questionadas pela população. “Crianças e mulheres gostam da gente, já os rapazes nos olham diferente”, conta a novata Izabel Zaurízio ao falar de seu estágio em um bairro periférico.
Durante o curso, eles estudam estatísticas, que apontam os negros como principais autores de crimes, mas asseguram que a “mentalidade racista da sociedade” não motiva as abordagens. Essas ocorrem apenas quando há “fundada suspeita” – nas palavras de três policiais, que usaram o mesmo exemplo para esclarecer do que se trata: “se está calor e tem um cara com moletom e as mãos no bolso, gera uma suspeição”, afirmam.
Para o major Anderson Celante, 43, comandante da 126º Cia de Polícia, que recebeu 12 novatos, a discriminação no Brasil hoje é mais por ser pobre, “do que por crença, gênero e cor”. Ele é o oitavo Celante (na família) oficial da PM e, em sua época de formação, o treinamento incluía sete dias de acampamento. Agora é só um, em que os alunos fazem 24 horas de jornada, rastejam na lama e passam por câmara de gás.
Após a conclusão do curso, os recrutas recebem colete, arma, bastão e algemas para minimizar os riscos nas ruas. Quando pergunto se não sentem medo, eles respondem que confiam no treinamento. “É uma profissão que exige coragem e rusticidade”, resume Damásio.
Medo. Paulo Scalzer, 23, do Rio de Janeiro, decidiu ser PM em Minas quando viu que policial aqui anda na rua de farda, sem medo. “Tomei um susto. Lá, é só de viatura, não pode nem colocar a farda no varal”.
Carreira atrai, mas tem que ter vocação
Quando entram no curso, eles recebem R$ 3.000 e se formam com R$ 4.000. Uns acham pouco, outros dizem ser “bem razoável”. Todos pensam na organizada carreira da PM, com salários que ultrapassam R$ 20 mil.
Mas tem que gostar de entrar em um restaurante, de folga, e ter que “planejar aonde vai sentar e o que vai fazer se ocorrer um assalto”, conta Izabel Zaurízio, porque eles respondem se não fizerem nada. Ainda assim, Luiz Alberto Gandelmann, 23, filho de PMs, diz que mesmo “se o salário fosse de R$ 1.200, também seria policial”.
Veja algumas das frases ditas pelos mais de 20 recrutas ouvidos pela reportagem:
“A gente gosta de prestar continência, é o nosso cumprimento”
“Ser PM é uma profissão muito gratificante, dinâmica”
“O sonho de todo guarda municipal é ser PM porque tem plano de carreira”
“A gente tem o tempo inteiro que provar que é boa também, eles são policiais mas são homens, é a cultura do Brasil” (sobre ser policial mulher)
“Sou PM por vocação, por amor, é inexplicável”
“É um sacerdócio” (sobre ser PM)
“A polícia te levanta, eu tenho certeza que posso confiar minha vida à minha dupla de policiamento”
“Acho fantástico sair e prender, mas vou me sentir mais realizado se eu puder orientar uma criança que está no sinal, para que eu não tenha que prendê-la daqui a 10 anos”
“Direitos Humanos é uma disciplina muito forte no curso, porque a gente (PMs) tem um código penal específico, que é muito severo”
“Somos condicionados de 12 a 16 horas por dia porque um erro nosso é muito grave, a gente tem que agir na perfeição”
“ Infelizmente, o que a gente sente na rua é que o pessoal está desrespeitando muito a PM, tem muita reação a abordagem, enfrentamento. Não tem mais aquele temor (dos policiais)”
“Quem passou pela ditadura, acha que a polícia está na mesma metodologia até hoje”
“Quando estávamos no policiamento a pé, surpreendemos um flanelinha extorquindo uma mulher, corremos atrás dele, mas com esse tanto de coisa que a gente carrega (bastão, arma, algemas) fica difícil, não conseguimos pegá-lo”
“Nossa função aqui (no policiamento à pé) é manter relacionamento próximo com comerciantes, transeuntes, criar uma confiança”
“O pessoal mete o pau na PM, mas na hora que sentiu a possibilidade de não ter a PM por perto já começou a valorizar” (sobre a greve da Polícia Militar)
“A gente fica 11 horas esperando para registrar a ocorrência em dez minutos e o bandido vai embora antes da gente, isso incomoda um pouco, tem cara com 25 passagens na ficha que está na rua” (sobre uma situação vivida por ele no período de estágio)
“Como não tem educação, tem que construir presídio”
“O sistema (carcerário) é educativo em vez de ser repressivo, a pessoa tinha que ter muito medo de ir para a cadeia, mas o cara tem uma alimentação balanceada, com nutricionista e ganha auxílio reclusão”
“É muito mais fácil para uma criança hoje ver um tio tendo tudo com dinheiro fácil no tráfico, aprender aquilo, do que aprender português. A gente enxuga gelo, mas é necessário”
“Se você pega um policial todo desleixado é diferente do que te atende muito bem”
“O (Jair) Bolsonaro (deputado) fala o que muitos pensam e não tem coragem de falar”
“A grande maioria (dos PMs) gosta dele (do Bolsonaro), porque ele já foi militar, defende muito a polícia e é contra esse trem de audiência de custódia”
“Ele (Bolsonaro) é o único que eu vejo falando que o policial militar não merece sofrer tanta burocracia, tanto processo, por estar fazendo o trabalho dele como PM”
“Os Direitos Humanos estão tirando um pouco da liberdade do policial de trabalhar, e o bandido hoje está criando mais asa, mas não concordo com o extremismo de baixar idade penal, prender todo mundo, esse também não é o caminho”
“Se um policial civil é truculento da mesma forma que um militar, ele não é julgado da mesma forma”
“Meu pai foi militar na ditadura, os policiais eram mais militares do que policiais”
“O salário (de PM) é bom mas não é proporcional ao nosso trabalho, aos riscos, não ganhamos adicional de periculosidade, de insalubridade”
“Agora (como recrutas) estamos muito certinhos”
Fonte: Reportagem Joana Suarez
Jornal O Tempo